
Saí em baixo daquela chuva. O dia estava quente, mas como surpreender é coisa que o clima adora fazer, por pura inconstância de seus sentimentos, despencou as lágrimas àquela tarde.
Desci a rua agraciado e atormentado pelas gotas que de tão espessas formavam onomatopéias no toque da superfície negra do guarda-chuva. Caminhei até o encontro do meu transporte. O que fiz ou pensei nesse caminho não interessa realmente, já que o que quero realçar é o acontecido dentre meu motorista coletivo e meu estado indiferente no último assento.
Como aprendi muito cedo, parei no ponto de ônibus, estendi meu braço por diversas vezes clamando a mera atenção dos condutores, acho que até fortaleci o bíceps. Me enchi de satisfação ao ver um deles parar e abrir a porta. Não se sente encantado quando, após um dia inteiro de trabalho e um caminho cansativo, o barulhinho de espirro da porta do coletivo a dentre seus ouvidos ao se abrir?
Mas o que venho contar é a situação que se deu posteriormente.
Ao entrar logo cumprimentei o motorista com um: _ Boa noite! Pobre coitado sentado e chacoalhando por horas sem receber, se quer, um obrigado por transportar vidas com segurança. A cobradora, um tanto ranzinza, não respondeu minha saudação e ainda retrucou: _ Acha que tenho tanto troco assim? E era apenas uma nota de vinte.
Claro que me contive em respondê-la como se manda o figurino do senso comum.
_ Passo e procuro se tenho trocado.
Ela tinha a cara marcada, pelo tempo ou pela profissão, como a fusão da borracha pneumática para evitar derrapamento do veículo. Talvez por isso o atrito facilitado com os passageiros.
Paguei e fui buscar o conforto do meu cantinho provisório. A dúvida me dominou, já que opções não faltavam. Cruzei toda sua extensão e me aconcheguei no último banco, do último canto, no lado esquerdo. O lado não tem muita influência mas será referencial.
Administrando minha solidão, conciliada à música nos ouvidos oferecida pela tecnologia e o frio que se precipitava do ar-condicionado, me apareceu a devida inquietação.
Pobre moça, jovem e atordoada. Jogou a mochila no último banco, do último canto, do lado direito, e começou uma cruzada com os pertences. Retirou de casaco à livro da bolsa, até desistir após se ver vencida pela correria cotidiana que afeta a memória e nos faz deixar perder-se coisas como, no caso, a carteira.
Seu rubor nas bochechas , as mordiscadas nos lábios e a movimentação do corpo deixavam-me incomodado. Não queria essa tormenta compartilhada, estava no meu canto, o último, do lado esquerdo. Mas fui obrigado a participar da situação e ouvi o telefonema que fez:
_Mãe! Esqueci a carteira, vê se está aí... – quase chorava – Já passei, como vou pagar?
Eu poderia ter me contido e me retraído, mas não, movido pelo sentimento de compartilhamento, não digo solidariedade porque não foi pena, foi simples premonição. Já acostumado com os devaneios de meus neurônios confusos, sabia que o mesmo haveria, algum dia, de me acontecer.
_ Moça! Se quiser lhe empresto o dinheiro.
_ Ah! Você faria isso? Eu lhe pago depois.
_ Não precisa. Ninguém morre por causa de R$ 2,40. – Essa minha afirmação pode ser contraditória com a realidade, mas foi a hipérbole que me veio instantaneamente.
Ela insistiu por um tempo em devolver, mas não pretendia ter outro inconveniente por tão pouca moeda.
Logo a frente meu destino se apresentou, e ao descer ouvi:
_ Obrigada! Boa sorte!
Não sei nem o nome da criatura.
Ao atravessar a rua, meus devaneios neurais já estavam em atividade e por um segundo não fui desmembrado por um piloto a lá “coelho da Alice no país das maravilhas”.
Chegando ao outro lado da rua com braços e pernas integrados ao corpo, o funcionamento encefálico foi eficiente:
_ Ah! Se não fosse aquele “Boa sorte!”.