Doação


Todo dia ele passava pela praça e via sempre as mesmas coisas, o pipoqueiro, o cara dos balões, as babás com as crianças, a galera da maromba, algumas pessoas passeando com seu cães. Atravessava-a para pegar o ônibus para o trabalho.
Todos os dias eram assim. Pipoqueiro, baloeiro, marombeiro, e por aí vai.
Contudo, um dia viu uma coisa muito intrigante. Uma jovem muito agraciada pela beleza, com olhos mareados, o rosto denunciando a noite tristonha, estava sentada num banco com um pedaço de papelão escrito com batom vermelho:
“Doa-se um coração”
Ele não sabia o que pensar. Será que ela iria morrer e queria que doassem seu coração? Ou ela era suicida e queria arrancar o coração? Alguém precisava ajudar essa moça.
Parou em frente a ela, que logo o indagou:
_ Você aceita o meu coração? – uma lágrima escorreu de seus olhos – Ele não tá muito bom, ainda bate, eu tive que colar ele de ontem para hoje, foi rápido, mas ficou direitinho.
Ele fez uma cara de estranheza e disse:
_ Moça, não preciso que me dê nada, só fiquei preocupado, você está bem?
As lágrimas escorriam por seu rosto lânguido e alvo, e quanto mais ela chorava mais branca ficava e seus lábios corados pareciam peças de carne sanguinolentas.
Entre soluços ela tentava contar uma história, mas nada se entendia, somente algumas onomatopéias saiam.
Sentou-se do lado dela, passou seu braço pelo ombro e disse:
_ Acalme-se, conte-me o que houve.
Ela respirou fundo, deu algumas fungadas, esfregou os olhos com as mão e começou.
_ Ontem a noite, eu tentei atravessar a rua da vida, deixei meu coração cair, veio um caminhão e o atropelou. Doeu tanto, o vi partir e esmigalhar em muitos pedacinhos. Esperei o sinal fechar, recolhi tudo e colei. – Ele achava tudo muito esquisito mas não a interrompeu – Sabe não é a primeira vez que isso acontece. Sempre que me distraio e o perco, ou o preencho e fica pesado, ele cai, espatifa no chão, ou é pisado, atropelado, se parte, eu cato, colo, e fico com ele de novo. Sempre falta um pedacinho, nunca fica perfeito, mas bate, sempre volta a bater. Não é incrível?
Ele acenou com a cabeça que sim, e ela continuou.
_ Sabe o que é mais incrível? É que sempre quando você acha que ele ta seguro, em mãos confiáveis, é que a queda é maior.
Ele já não se segurando para falar, disse:
_ Mas se ele bate, funciona bem, e ainda, mesmo faltando pedaços, sobrevive a tantas desilusões, porque quer se desfazer dele?
_ Porque acho que nunca vou saber usar, e sempre tem alguém precisando mais que eu. Eu desisto, não preciso de um coração, já não me serve mais.
Category: 0 blá blá blá

Desabafo II


-->
Fui buscar conforto na melancolia de Billie Holliday, e a vontade de cuspir toda essa dor que me corrói foi crescendo que tive que escrever.
Lembro sempre do sábio que me disse “Escreve que melhora”, mas dessa vez esse não é bem o objetivo. Sei que não vai melhorar nada, porque eu não quero ainda que esse sentimento saia de mim. Talvez seja burrice da minha parte mas não dá para jogar fora algo que você quis tanto que acontecesse.
Eu já sei como tudo funciona, e quem sempre fica sozinha sou eu, mas eu não sei mais o que fazer. Ah! Como já desejei, várias vezes, ser daquele tipo que olha nos olhos e diz: _ Fica comigo que eu te faço feliz! Ou: ­_ Esquece ela, ou deixa que eu te faço esquecer!
Mas não sei ser assim, é exatamente isso que eu queria que acontecesse, mas de que adianta quem acaba sozinha sou eu.
Está doendo mais do que imaginei que fosse doer, como eu queria que não fosse verdade, mas é, sempre, e nessas horas a gente pensa que a culpa é nossa, que nunca vai dar certo, ou que não somos merecedoras de ser correspondidas a altura. Digo no plural porque acho que não sou só eu que sinto as coisas assim.
Mas meu coração está cansado de mais, passar por isso sempre, talvez não só o meu no mundo, mas nessas horas o mundo fica tão pequeno, não importa quanta gente sofre também, porque ninguém está sentindo a minha dor, só eu.
As pessoas falam sempre os mesmos conselhos, e fazem sempre as mesmas apostas para o futuro, mas eu não quero saber, não consigo absorver nada agora, ta doendo de verdade, muito.
Odeio quando isso acontece, você fica com medo de se envolver, e quando você decide se arriscar quebra a cara. Não importa saber que o tempo passa, que você supera, que você esquece, porque isso não muda a dor que você sente.
E sabe o que eu mais odeio? É ter que ouvir o quanto a gente é boa, inteligente, especial, entre outras qualidades que as pessoas repetem incansavelmente, para dizer que a outra pessoa não nos merece.
Então farei um desejo para qualquer santo, ou estrela cadente que me aparecer, quero ser menos boa, menos inteligente, menos especial, entre outras qualidades para que me mereçam. Porque não me adianta ser nada se quem acaba sozinha sou eu.
Não quero me apegar aos meus livros, amigos, nem nada que me distraia, não há musica, nem remédio que faça essa vontade de arrancar fora o coração e por uma pedra no lugar, suma.
Eu quero meus abraços de volta, meus beijos, meus sorrisos, não quero me acostumar com essa idéia de não te ter mais, quero as faltas de léxico que acho tão bonitinho, quero ficar esperando o falar depois do “deixa eu te falar nat” , só quero isso de volta.
Não quero o amor de Hollywood. Quero sentir medo e saber exatamente para quem ligar, quero falar de qualquer assunto sem ser chata, eu só queria você comigo.
Quantas vezes eu olhei para telefone e quis ligar, para falar nada, só ouvir a voz que não sai da minha cabeça. Ah! As fotos são as minhas piores inimigas, me remetem lembranças que me doem mais porque me fazem tão bem, e por isso acabam comigo.
Não consigo parar de me indagar ou procurar um porque, mesmo já o conhecendo. É como se as idéias ou o coração não permitissem que eu me apegue a uma verdade. E a única coisa que repete na minha cabeça é o quanto eu queria que ele voltasse para mim.
Mas agora é agonizar até que o tempo se encarregue de curar essa ferida que sangra, dói e me faz chorar. Enquanto espero um milagre talvez, vou fazer da minha dor o meu abrigo. Porque as pessoas vão sempre nos magoar, mas eu tenho o direito de escolher por quem vale a pena sofrer. E quer saber? Acho que por ele vale muito a pena.
Category: 2 blá blá blá

Incômodo


Eu não gosto quando as pessoas ficam me olhando. Que chato isso. Não posso nem andar na rua. Não to bonita hoje. Que ódio! Não é que eu não goste, mas não to feliz hoje. Não posso nem andar na rua. Eu gosto dessa praça, me dá uma paz. Buzina. Que, que é isso hein?!. Idiota. Não posso nem ficar a sóis com meus pensamentos. Que frio na barriga. Esses pensamentos, é melhor esquecer, não gosto desses dias que não consigo parar de pensar em uma coisa, em uma pessoa. Sai da minha cabeça, sai da minha barriga. Fica uma dorzinha no estômago, nem dá vontade de comer. Odeio isso. Que cheiro bom! Churros! Quero um. Não, é melhor não comer, engorda. To atrasada também , só vivo atrasada. Tenho que acordar mais cedo. Nunca acordo mais cedo. Que sono ainda, quero voltar para casa. Podia estar escrevendo essas coisas. Droga não li o livro! Nem o conto! Li uma parte, acho que vai dar para entender.
Que casal bonito de velhinhos, quero ficar assim. Casar? Não nem pensar. Loucura. Lá vem ele de novo para minha cabeça. Que cheiro bom ele tinha, adoro quando ele me abraça, quando sorri para mim. Pára de pensar, é melhor não pensar. Troço chato. Nem gosto dele mesmo. Não posso gostar não. Apaixonada. Isso faz mal, eu não sou assim. Sou segura, quero isso não, e depois que gosta já era, é ciuminho para cá, tristezinha para lá, eu não. Não nasci para isso. Não tenho paciência. Mas não é que eu to com uma saudade, é bom ficar perto dele, me faz tão bem.
Faz nada, é carência isso. Nem vou ligar, nem to ligando. Ele nem telefonou para mim. Mas eu nem me importo mesmo. Será que não gosta de mim? Eu não sou insegura, quem perde não sou eu mesmo. Mas não quero perdê-lo. Odeio gente insegura, Aí!aí! para cá , Aí! Aí! para lá, não gosto disso. Nossa que mulher mal educada, não o lha para onde anda, esbarra nos outros e nem pede desculpas. Vou trabalhar, isso vai me distrair. Eu ansiosa por causa de homem, nem pensar. Mas bem que ele podia me ver hoje.

----------------------------------------------------------
Aderindo ao estilo de Patricia Melo em "O Matador"
Category: 2 blá blá blá